domingo, setembro 11, 2005

Encostei-me para trás na cadeira de convés

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Álvaro de Campos

2 comentários:

Anónimo disse...

esse grande poeta... homem de mil facetas, mas sempre com palavras arrancadas do fundo da alma, que muitas vezes fazem estremecer.

optima escolha no poema :D
bjs

(mas a minha faceta favorita de Fernando Pessoa sempre foi Bernardo Soares - "O livro do Desassossego"... o meu livro de cabeceira..)

Unknown disse...

também gosto muito.. Mas este poema tem muito a ver comigo.. Desde a primeira vez que o li pensei que aquilo tinha sido feito para mim..
aparece sempre.. ;)
Bejs